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É comum
que o debate sobre criminalidade se polarize entre dois grupos: o dos
defensores dos direitos humanos e os adeptos da "linha dura".
Enquanto os primeiros denunciam as más condições das cadeias e os maus
tratos impingidos por policiais e pelo sistema carcerário, os segundos
acreditam que o tratamento dispensado a criminosos deve ser o mais duro
possível. Mas há um personagem no cenário do crime capaz de fazer esses
dois grupos entrarem em contradições: o linchador, a pessoa que resolve
fazer justiça com as próprias mãos e agride ou mata um suposto criminoso.
Em tese de doutorado defendida
pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (USP)
no final de 2000, Helena Singer, pesquisadora do Instituto
de Estudos em Direitos, Políticas e Sociedades (IEDIS),
de São Paulo, analisou artigos sobre linchamentos publicados na
imprensa nacional entre 1980 e 1996, oito inquéritos policiais e processos
penais relativos a casos de linchamentos ocorridos no estado de São Paulo
nos anos 80, e toda a produção acadêmica brasileira sobre o tema, para
concluir que há o que chama de "desconcerto" nos discursos daqueles
grupos antagônicos, que avaliou na seguinte entrevista:
Como se verifica, no que
se refere ao linchamento e aos linchadores, o que você chama de "desconcertos"
nos discursos dos grupos defensores de direitos humanos?
Há vários desconcertos. Ao falar
dos linchamentos, intelectuais, juristas e defensores dos direitos humanos
sempre repõem o discurso da civilização contraposta à barbárie. Acontece
que este discurso é o que justificou a colonização, a escravidão, a
exploração e até mesmo genocídios. No que se refere especificamente
aos direitos humanos, o desconcerto está no fato de os seus defensores
reinvindicarem a prisão para os linchadores. Isto é desconcertado porque
a prisão é uma violação aos direitos humanos em si.
Como isso se reflete na mídia?
O que tem ocorrido, desde o
início dos anos 80, é uma guerra entre os defensores dos direitos humanos
e a chamada "mídia marron", os defensores da violência contra
os "bandidos". Os primeiros acusam os últimos de incitarem
à violação aos direitos humanos, das quais os linchamentos fariam parte.
Já os jornalistas e radialistas que pregam a "linha dura"
acusam os defensores de direitos humanos de defenderem bandidos porque
estão sempre denunciando as condições desumanas e degradantes de nossas
prisões. Em meio a tudo isso, pesquisas quantitativas e qualitativas
mostram que a população brasileira apóia o linchamento como forma de
justiça. Assim, quando os intelectuais falam que linchamento é barbárie,
estão dizendo que a maior parte da população é bárbara e que é preciso
civilizá-la pela via do sistema penal, que inclui polícia e prisão.
Como se dá a articulação
do discurso denconcertado sobre os linchamentos com a posição hegemônica
sobre a prisão como punição?
A posição hegemônica - atualmente
vinda sobretudo dos Estados Unidos após o desmantelamento do Estado
de Bem-Estar Social - é que a prisão é a solução para a questão da criminalidade.
É por isso que aqueles que consideram o linchamento um crime pregam
a prisão dos linchadores. Acontece que os únicos que vêm o linchamento
como um crime são os defensores dos direitos humanos e a prisão é uma
violação aos direitos humanos em si mesma. Conforme a resposta anterior,
os grupos organizados em torno da defesa dos direitos humanos são os
primeiros a criticar a prisão. Dizem eles mesmos: a prisão é ineficaz,
cara, desumana, degradante. Aliás, foram por essas críticas que acabaram
sendo identificados como "defensores de bandidos". Mas a prisão
não é apenas violação dos direitos humanos quando em seu interior ocorrem
"ilegalidades", como tortura e maus tratos. Afinal, mesmo
que considerássemos uma hipotética prisão em que tudo fosse feito de
acordo com a lei, ainda assim, seus habitantes não teriam direito à
liberdade de desenvolvimento de sua personalidade, de locomoção, residência,
emigração. Também não teriam direito a igualdade, privacidade, honra,
reputação, dignidade, propriedade, aos serviços públicos, a receber
e transmitir informações e idéias, a participar de reuniões, tomar parte
no governo, escolher o trabalho, participar em sindicatos, gozar de
férias remuneradas, assegurar a sua família padrão de vida compatível
com a saúde e o bem-estar, participar da vida cultural e do progresso
científico de sua comunidade. A prisão é uma violação aos direitos humanos
em si e por isso é desconcertado reivindicá-la em nome dos direitos
humanos. Podemos fazê-lo, mas temos que admitir que queremos a prisão
porque somos vingativos e porque queremos impingir sofrimento em quem
fez outros sofrerem. Esta é exatamente a mesma lógica que faz com que
a maioria da população apóie os linchamentos.
Haveria alguma alternativa
coerente para os discursos dos "defensores dos direitos humanos"?
Temos que superar o discurso
jurídico que classifica os atos segundo os códigos e portanto como "crimes".
Temos que encarar os fatos como eles se dão: os linchamentos são uma
forma de controle social. Acontecem como represália a algum outro ato
considerado inaceitável para aquela comunidade. Não é por coincidência
que, no Brasil, eles ocorrem quase totalmente nas regiões mais carentes;
são, por isso mesmo, um sinal de que falta àquela população condições
dignas de sobrevivência. O motivo mais imediato é a ausência de policiamento,
mas quando investigamos, vemos que a polícia não chega lá porque não
há arruamento e não havendo arruamento, também não há coleta de lixo,
saneamento básico. A ausência de iluminação, as moradias precárias,
a falta de espaços de lazer - tudo isso facilita que ocorram atos violentos,
atos que venham a tornar ainda pior a vida ali e contra os quais um
dia a população se revolta. Uma atitude coerente com o discurso dos
direitos humanos seria lutar pelos direitos econômicos e sociais daquela
população.
Veja também:
Site
do Movimento Nacional dos Direitos Humanos
Site da ONG Human Rights Watcht
Palavras-chave:
Linchamento,
Direitos Humanos, Punição, Civilização, Democracia
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