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24/1/2001
Como encarar linchadores? Contradições nos discursos dos defensores dos direitos humanos.

 
 

É comum que o debate sobre criminalidade se polarize entre dois grupos: o dos defensores dos direitos humanos e os adeptos da "linha dura". Enquanto os primeiros denunciam as más condições das cadeias e os maus tratos impingidos por policiais e pelo sistema carcerário, os segundos acreditam que o tratamento dispensado a criminosos deve ser o mais duro possível. Mas há um personagem no cenário do crime capaz de fazer esses dois grupos entrarem em contradições: o linchador, a pessoa que resolve fazer justiça com as próprias mãos e agride ou mata um suposto criminoso.

Em tese de doutorado defendida pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) no final de 2000, Helena Singer, pesquisadora do Instituto de Estudos em Direitos, Políticas e Sociedades (IEDIS), de São Paulo,  analisou artigos sobre linchamentos publicados na imprensa nacional entre 1980 e 1996, oito inquéritos policiais e processos penais relativos a casos de linchamentos ocorridos no estado de São Paulo nos anos 80, e toda a produção acadêmica brasileira sobre o tema, para concluir que há o que chama de "desconcerto" nos discursos daqueles grupos antagônicos, que avaliou na seguinte entrevista:

Como se verifica, no que se refere ao linchamento e aos linchadores, o que você chama de "desconcertos" nos discursos dos grupos defensores de direitos humanos?

Há vários desconcertos. Ao falar dos linchamentos, intelectuais, juristas e defensores dos direitos humanos sempre repõem o discurso da civilização contraposta à barbárie. Acontece que este discurso é o que justificou a colonização, a escravidão, a exploração e até mesmo genocídios. No que se refere especificamente aos direitos humanos, o desconcerto está no fato de os seus defensores reinvindicarem a prisão para os linchadores. Isto é desconcertado porque a prisão é uma violação aos direitos humanos em si.

Como isso se reflete na mídia?

O que tem ocorrido, desde o início dos anos 80, é uma guerra entre os defensores dos direitos humanos e a chamada "mídia marron", os defensores da violência contra os "bandidos". Os primeiros acusam os últimos de incitarem à violação aos direitos humanos, das quais os linchamentos fariam parte. Já os jornalistas e radialistas que pregam a "linha dura" acusam os defensores de direitos humanos de defenderem bandidos porque estão sempre denunciando as condições desumanas e degradantes de nossas prisões. Em meio a tudo isso, pesquisas quantitativas e qualitativas mostram que a população brasileira apóia o linchamento como forma de justiça. Assim, quando os intelectuais falam que linchamento é barbárie, estão dizendo que a maior parte da população é bárbara e que é preciso civilizá-la pela via do sistema penal, que inclui polícia e prisão.

Como se dá a articulação do discurso denconcertado sobre os linchamentos com a posição hegemônica sobre a prisão como punição?

A posição hegemônica - atualmente vinda sobretudo dos Estados Unidos após o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social - é que a prisão é a solução para a questão da criminalidade. É por isso que aqueles que consideram o linchamento um crime pregam a prisão dos linchadores. Acontece que os únicos que vêm o linchamento como um crime são os defensores dos direitos humanos e a prisão é uma violação aos direitos humanos em si mesma. Conforme a resposta anterior, os grupos organizados em torno da defesa dos direitos humanos são os primeiros a criticar a prisão. Dizem eles mesmos: a prisão é ineficaz, cara, desumana, degradante. Aliás, foram por essas críticas que acabaram sendo identificados como "defensores de bandidos". Mas a prisão não é apenas violação dos direitos humanos quando em seu interior ocorrem "ilegalidades", como tortura e maus tratos. Afinal, mesmo que considerássemos uma hipotética prisão em que tudo fosse feito de acordo com a lei, ainda assim, seus habitantes não teriam direito à liberdade de desenvolvimento de sua personalidade, de locomoção, residência, emigração. Também não teriam direito a igualdade, privacidade, honra, reputação, dignidade, propriedade, aos serviços públicos, a receber e transmitir informações e idéias, a participar de reuniões, tomar parte no governo, escolher o trabalho, participar em sindicatos, gozar de férias remuneradas, assegurar a sua família padrão de vida compatível com a saúde e o bem-estar, participar da vida cultural e do progresso científico de sua comunidade. A prisão é uma violação aos direitos humanos em si e por isso é desconcertado reivindicá-la em nome dos direitos humanos. Podemos fazê-lo, mas temos que admitir que queremos a prisão porque somos vingativos e porque queremos impingir sofrimento em quem fez outros sofrerem. Esta é exatamente a mesma lógica que faz com que a maioria da população apóie os linchamentos.

Haveria alguma alternativa coerente para os discursos dos "defensores dos direitos humanos"?

Temos que superar o discurso jurídico que classifica os atos segundo os códigos e portanto como "crimes". Temos que encarar os fatos como eles se dão: os linchamentos são uma forma de controle social. Acontecem como represália a algum outro ato considerado inaceitável para aquela comunidade. Não é por coincidência que, no Brasil, eles ocorrem quase totalmente nas regiões mais carentes; são, por isso mesmo, um sinal de que falta àquela população condições dignas de sobrevivência. O motivo mais imediato é a ausência de policiamento, mas quando investigamos, vemos que a polícia não chega lá porque não há arruamento e não havendo arruamento, também não há coleta de lixo, saneamento básico. A ausência de iluminação, as moradias precárias, a falta de espaços de lazer - tudo isso facilita que ocorram atos violentos, atos que venham a tornar ainda pior a vida ali e contra os quais um dia a população se revolta. Uma atitude coerente com o discurso dos direitos humanos seria lutar pelos direitos econômicos e sociais daquela população.

Veja também:

Site do Movimento Nacional dos Direitos Humanos
Site da ONG Human Rights Watcht

Palavras-chave:
Linchamento, Direitos Humanos, Punição, Civilização, Democracia

 

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