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O bizarro ato cultural das africanas
Por Flávio
Dieguez *
* Matéria publicada
no jornal Gazeta Mercantil, caderno Fim de Semana, em 29/06/2001
As ciências exatas não são,
de maneira nenhuma, tão complicadas quanto se pinta. Difíceis,
mesmo, são as ciências humanas - porque nos obrigam a
olhar no espelho, o que as pessoas, cientistas inclusive, nem sempre
conseguem fazer com a necessária objetividade. É sintomático
que Freud tenha construído a psicanálise sobre a idéia
de que a mente faz o que pode para não ver uma parte de si
mesma. Conhece-te a ti mesmo, a máxima do filósofo grego
Sócrates, talvez tivesse, no fundo, uma intenção
maliciosa.
Os antropólogos e os etnólogos,
em particular, convivem com esse problema porque têm como dever
de ofício encarar a estranhíssima coleção
de costumes às vezes bizarros e não raro desagradáveis
e violentos que povoam fartamente a história da civilização.
Um dos hábitos mais difíceis de estudar com isenção
é a circuncisão feminina, que horroriza o mundo desde
que os fotógrafos, nos anos 70, chamaram a atenção
para a inconcebível crueldade embutida no ato de extirpar,
sem anestesia e freqüentemente com a ajuda de objetos toscos,
como conchas, pedras ou cacos de vidro, partes do órgão
sexual feminino, especialmente o clitóris.
Nos últimos anos, a indignação
internacional cresceu na proporção direta do impacto
provocado pelas mutilações genitais que a americana
Stephanie Walsh fotografou no Quênia e lhe deram o prêmio
Pulitzer em 1996. Mas é um engano achar que esse tipo de comportamento
pode ser erradicado apenas pela força do protesto, advertem
os antropólogos. Não está claro sequer que ele
deva ser alvo do repúdio puro e simples de quem está
de fora, pelo menos enquanto se continuar largamente no escuro quanto
às motivações dos povos que praticam a circuncisão
sem pudor e dos valores que esse ritual antiqüíssimo recebe
nessas culturas.
O fato, segundo a antropóloga
Carla Obermeyer, da Organização Mundial de Saúde
(OMS), é que as informações disponíveis
sobre o assunto, além de serem esparsas e largamente inconclusivas
- ou apesar disso -, têm sido vistas pela óptica míope
da militância a qualquer custo. 'Só agora começa
a haver uma mudança nesse pressuposto, com o aparecimento de
pesquisas que nos dão uma visão mais clara do problema',
diz ela. 'Embora a condenação imediata e os apelos militantes
de erradicação continuem a prevalecer', afirma a cientista,
'vê-se agora um número maior de pontos de vista, inclusive
de mulheres dos países onde a circuncisão é encontrada'.
Essa mudança, de acordo com a
pesquisadora, revela realidade desconhecida da circuncisão
feminina. Ao contrário do mito, não se trata de um hábito
primitivo, confinado a umas poucas tribos isoladas no interior da
África. Segundo a OMS, está presente em 29 países
africanos. É praticado por mais de 80% da população
no Egito, Somália, Mali, Etiópia, Eritréia, Guiné,
Sudão, Gâmbia, Serra Leoa e Djibuti. Como se estima que
haja 130 milhões de mulheres circuncizadas nesses países,
a prática envolve, direta ou indiretamente, um universo de
quase meio bilhão de pessoas. Pior do que isso: o costume está
sendo transportado para a Europa e para a América junto com
as levas de migrantes africanos, especialmente de língua árabe.
Preocupados com o crescimento da circuncisão
feminina em cidades como Londres, Paris, Quebec ou Los Angeles, os
governos estão tendo que adotar medidas extremas. Foi o caso,
por exemplo, nos Estados Unidos, onde a deputada democrata Patricia
Shroeder conseguiu aprovar uma lei, em 1996, tornando essa prática
ilegal no país. Mas repressão direta não tem
dado certo, como mostram as pesquisas mais recentes sobre o assunto
publicadas em dois livros importantes lançados este ano e resenhados
por Carla na revista americana 'Science': 'A Circuncisão Feminina
na Cultura Africana, Controvérsia e Mudança', das antropólogas
americanas Bettina Shell-Duncan e Ylva Hernlund, ambas da Universidade
de Washington, e 'A Controvérsia da Circuncisão Feminina,
Uma Perspectiva Antropológica', coletânea organizada
pela antropóloga americana Ellen Gruenbaum, da Universidade
da Pensilvânia.
Este último livro documenta o
efeito negativo mais impressionante das campanhas recentes de erradicação
- a circuncisão em massa de milhares de mulheres quenianas
em protesto nacional contra a interferência estrangeira nos
assuntos do país. 'O protesto teve lances dramáticos,
como o corte genital de muitas meninas em praça pública',
comenta Carla. Outro problema recorrente, revelado com clareza nos
livros, é que o costume da circuncisão, dependendo das
mudanças econômicas ou políticas na África,
passa de um lugar para outro de maneira inesperada. Assim, embora
o número de praticantes venha caindo entre os iorubás,
na Nigéria (onde a prática atinge 25% da população),
está crescendo no Chade (60%).
A questão da intromissão
externa é apenas um dos obstáculos ao esforço
anticircuncisão. Talvez ainda mais importante seja a incapacidade
de perceber que a obediência à tradição
dá aos seus praticantes a sensação de pertencer
a uma comunidade. Não deixa que o cidadão se sinta perdido
no mundo, em resumo. Diz o escritor holandês Heinz Kimmerle:
'Na África, os meninos e meninas só se incorporam aos
grupos de adultos se passarem pelos vários ritos, entre os
quais a circuncisão masculina e a excisão do clitóris
entre as meninas.' Mais do que um rito de passagem, diz Kimmerle,
esses 'verdadeiros sacrifícios' asseguram que os jovens se
tornem imortais, incorporando-se emblematicamente a seus ancestrais.
Esses valores simbólicos explicam
por que a prática dos cortes genitais passou, nos últimos
anos, a ganhar adeptos surpreendentes - entre os quais uma das pesquisadoras
incluídas na coletânea de Ellen Gruenbaum. Trata-se da
antropóloga negra americana Fuambai Ahmadu, que se mudou para
Serra Leoa e se iniciou na cultura de seus avós por meio da
excisão do clitóris. Para ela, a indignação
ocidental não tem nada a ver com o sentimento dos africanos
em relação aos seus rituais. A circuncisão, em
vez de ser um pesadelo, daria à mulher vantagens estéticas
e pessoais, constituindo a essência da feminilidade. Coerentemente,
ela espera que suas pesquisas ajudem a quebrar o 'silêncio perturbador'
das mulheres africanas que passam pelos ritos de iniciação.
Sem aprovar ou discordar, Carla festeja o aparecimento de opiniões
diversificadas no ambiente de pesquisa da circuncisão feminina.
'Isso nos ajudará a esboçar idéias mais claras
sobre um problema tão complicado de se lidar.'
Ela lembra, finalmente, da questão
da saúde. 'Não há dados conclusivos sobre os
malefícios efetivamente causados pelos cortes', explica ela.
'Os estudos mostram que, em Mali, por exemplo, as campanhas fracassaram,
em grande parte, porque a população não ficou
convencida dos danos que se atribuem à circuncisão feminina.'
Isso se deve ao fato de haver diversos tipos de mutilação
genital, conforme a extensão dos cortes. Pode haver extirpação
de apenas parte do clitóris, do clitóris inteiro, da
membrana que o recobre e dos lábios menores e, na forma mais
violenta, chamada infibulação, além dessas partes,
removem-se ainda as ligações que unem as extremidades
superior e inferior dos lábios maiores. O que resta é
pouco mais que o orifício vaginal.
É fácil compreender os
tropeços da militância quando se leva em conta que até
80% das circuncisões são dos tipos mais simples, mas
as campanhas, numa ingênua tentativa de provocar impacto, tendem
a se concentrar na infibulação. O resultado é
um exagero que confunde - em vez de esclarecer e convencer - as populações
africanas. É o que se vê no trabalho de Bettina Shell-Duncan
e Ylva Hernlund sobre os rendiles, uma tribo nômade de pastores
do Quênia.
Com uma população estimada
em 32 mil pessoas, essa cultura reúne criadores de ovelhas,
camelos e gado que falam o samburo, uma língua nativa dessa
região africana, seguem a fé islâmica e não
sabem ler ou escrever em parcela superior a 80%. Bettina diz que só
fez contato direto com a circuncisão feminina depois de conhecer
os rendiles. 'Minha pesquisa, inicialmente, versava sobre a anemia
e outros problemas nutricionais desse povo', conta ela. O objetivo
era descobrir até que ponto a nutrição era um
problema de saúde pública para eles.
A certa altura, porém, a cientista
diz que se espantou porque, após relacionar uma série
de itens esperados (como fome, malária e outras mazelas africanas),
uma das entrevistadas chamou sua atenção ao dizer que
não havia antibióticos para os casamentos.
'Só fui entender depois de algum
tempo, ao descobrir que a circuncisão feminina, entre os rendiles,
era realizada durante a cerimônia de casamento. Era a primeira
vez que ouvia falar disso. Então, aceitei o convite que me
fizeram em seguida para ver um casamento. Lá tomei conhecimento,
pela primeira vez também, dos detalhes dos cortes genitais.
Mas o choque e a emoção que senti se misturavam a uma
surpresa crescente, porque todo mundo parecia feliz. A noiva, especialmente,
estava explodindo de alegria. Confusa, sem saber o que dizer, fiz
uma ou outra pergunta sobre a cerimônia, mas fiquei a maior
parte do tempo calada, tentando processar tudo aquilo a que estava
assistindo.'
Bem mais tarde, depois de voltar para
os Estados Unidos e de ler e aprender mais a respeito do ritual, Bettina
resolveu começar uma pesquisa sobre os costumes e regras da
sociedade rendile. 'Eu agora percebo que se trata de um importante
rito de passagem, essencial para a transformação das
meninas em mulheres. E, dentro desse contexto, constitui um requisito
básico para o casamento e para uma gravidez legítima.'
É tão simples assim: a comunidade só legitimiza
as uniões e os filhos das mulheres circuncizadas. 'Não
se deixar circuncizar, nesse contexto, é abrir mão da
maternidade e da vida conjugal - ou seja, é uma decisão
que tem um preço alto na sociedade rendile.'
A reação das pessoas a
esses fatos, normalmente, não são muito diversas da
de Bettina, no princípio. A incapacidade de enquadrar os horrores
da circuncisão em categorias morais ou de comportamento causa
mais confusão do que acertos. Os mais radicais tendem a imaginar
que ela constitui uma agressão aos direitos humanos - mais
precisamente, uma violação aos direitos de todos à
integridade do próprio corpo. Mas, como diz a antropóloga,
essas tentativas são complicadas e paradoxais. Bettina afirma
que o argumento, na sua opinião, é muito forte e convincente.
Mas concorda com o resultado de outras pesquisas, indicando que há
muita incerteza sobre a extensão dos riscos envolvidos. Também
confirma que eles tendem a ser muito exagerados pelos ativistas e
pela imprensa.
'As campanhas não apenas se concentram
sobre as formas mais agressivas de circuncisão, como também
não costumam mencionar que existem outros tipos, deixando de
tomar o cuidado de descrevê-los. O objetivo é chocar
o público - o que vem acontecendo, a julgar pela atenção
que se dedica internacionalmente à circuncisão.' Mas
o resultado é um aumento desastroso da desinformação.
'Entre os rendiles, por exemplo, pratica-se
a excisão do clitóris, uma forma das menos violentas
de circuncisão', diz a pesquisadora. 'Sua conseqüência
mais importante são as infecções, que podem ser
em grande parte evitadas por meio de medidas simples.' A experiência
com os rendiles mostra que é possível reduzir as infecções
em até 70% se os cortes forem feitos com lâminas esterilizadas
e as mulheres, tratadas em seguida com vacina antitetânica e
antibióticos. Apesar disso, a atitude dos grupos de ativistas,
nessa questão, trai um claro preconceito de origem, como se
pode deduzir pela crítica que Bettina, indiretamente, endereça
a eles. 'Embora sejam contra a circuncisão por ela prejudicar
a saúde, muitos governos e associações médicas
não aceitam que ela seja feita com assistência médica.'
Ela argumenta que, se a intenção
é realmente proteger a saúde das mulheres, elas deveriam
receber antibióticos e cuidados médicos, o que não
vem acontecendo. Os próprios governos, em alguns casos, se
encarregam de coibir a assistência, como aconteceu recentemente
em Uganda. Carla comenta que isso se deve ao medo de que a 'medicalização'
dos cortes, e a conseqüente redução nos riscos
de saúde, acabe contribuindo para a sua disseminação.
Novamente, a eficácia das proibições - para não
falar nas justificativas éticas - é discutível.
'As pesquisas revelam que está ocorrendo uma ampliação
significativa nos rituais realizados sob supervisão médica
na África', diz ela.
Para Bettina, a assistência é
especialmente importante para as mulheres que se submetem à
circuncisão menos por vontade própria do que por não
ver outra alternativa dentro das sociedades em que vivem. 'Naturalmente,
defendo que se diga com clareza que não cortar é a opção
mais segura', adverte ela. 'Mas, se as próprias mulheres preferem
seguir a tradição, devem ter direito a ajuda médica.
Aliás, gostaria de saber por que elas estão tendo de
enfrentar tantas barreiras quando procuram aumentar sua segurança
durante a realização dos cortes.'
Ponderada, Bettina diz que procura responder
aos desafios de sua profissão com isenção e equilíbrio.
'Os antropólogos freqüentemente vêem comportamentos
que são, inicialmente, difíceis de entender. Só
por meio de pesquisas cuidadosas e meticulosas sobre o contexto social
em que se inscrevem se compreende o significado e o valor que esses
comportamentos têm para seus praticantes.' No caso da circuncisão,
sua experiência ensina que seria um erro básico ima-giná-lo,
simplesmente, como um meio de dominação masculina. 'Eu
entendo que essa prática é um rito importante para as
mulheres na sociedade dos rediles. As mulheres, de fato, são
as mais persistentes defensoras dessa prática, o que tem muito
a ver com os mecanismos de controle e de autoridade das mais idosas
da população sobre as mais jovens.'
Outro caso de contrabando de valores
ocidentais para outras culturas aconteceria quando se tenta interpretar
o significado da circuncisão feminina para as próprias
mulheres que passam por ela. 'Temos visões diferentes da dor,
classificando-a às vezes como boa, outras vezes como ruim.
O parto, por exemplo, é aceito como uma boa dor. Entre os rendiles,
as moças aceitam da mesma forma a dor da iniciação
no casamento e ficam exultantes.' Também não é
sempre verdade que a circuncisão tenha o valor de um amuleto
capaz de garantir 'a virgindade antes do casamento, e a castidade
depois dele', segundo se lê nos relatórios da OMS. 'A
circuncisão, para os rendiles, não tem a ver com a virgindade
- até porque a virgindade não tem valor social nessa
cultura. O sexo antes do casamento é amplamente aceito por
todos. Quanto à fidelidade, alguns dos meus informantes contam
que realmente se acredita que ela seja fortalecida pelos cortes. Mas
outros lembram que, se a crença existe, ela, na prática,
não funciona.'
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