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Para não perder a identidade, o paulista pode comer
Fábio Sanchez
Desde que o mercado
editorial descobriu a paixão pela culinária e esta deixou
de ser um tema exclusivo de alfarrábios de receitas, nas últimas
décadas, ela já foi prismada com as mais diversas atividades
humanas, desde as guerras promovidas pelo desejo por especiarias,
as nações que se formaram e se desmancharam por terras
mais férteis, até as finas refeições servidas
ao escritor Marcel Proust por seus mecenas. Belíssimas publicações
foram pensadas para homenagear a atividade de comer, muitas delas
tão atentas ao acervo iconográfico quanto desatentas
à praticidade das receitas que divulgaram. No caso de traduções,
sempre elegantes, encontra-se no mercado uma variedade inacreditável
de receitas com ingredientes que o cozinheiro médio nunca ouviu
falar.
Neste sortido ambiente em que livros sobre comida se confundem com
livros de arte, lançar uma publicação com receitas
simples deveria ser uma temeridade editorial. E não se trata
de um simples qualquer, não um acarajé que pode sempre
abrigar uma ilustração de Carybé. Estamos falando
aqui da fina flor do simples: pamonha, arroz de forno, canjica, pastel
de queijo, tigelada de chuchu, marmelada, galinhada... Até
se achará algum exotismo, pelo menos no lugar-comum do comedor
de hoje. Geléia de mocotó, afogado de São Luís
de Paraitinga, sopa de cavalo cansado etc. Mas nada que, no imaginário
colonizado da classe média, que compra os livros, faça
frente aos elegantes petiscos que Monet servia em Giverny. Trata-se
de São Paulo - Memória e Sabor, da Rosa
Belluzzo (Editora Unesp, 117 páginas), que embora foque o simples,
ou talvez por isso, deve ser lido.
Na concorrência acirrada com livros de receita e de butique,
o livro de Rosa Belluzzo propõe uma mistura matreira. Não
há ali uma única ilustração, um mapa,
um Debret, um desenho de prensa de mandioca ou uma foto do Largo do
Rosário que não vá direto, sem escalas, ao coração
do paulista. Já vimos essas ilustrações em algum
lugar (ou achamos que vimos algo parecido), em algum livro ou trabalho
escolar, já comemos essas receitas na casa da mãe, da
avó ou da tia. Não há nada ali que não
seja meticulosamente, carinhosamente paulista (e se você for
paulista, o cheiro de infância vai alcançá-lo
nas primeiras páginas). E foi essa a idéia. Registrar
o essencial dos últimos 400 anos de culinária paulista,
antes que ninguém mais se lembre como se faz. Como se trata
de uma especialista (Rosa Belluzzo é pesquisadora, autora de
outros livros sobre o tema e curadora de exposições
sobre a história da culinária), o livro se deixa fluir
por generoso espaço dedicado a explicar a formação
da raça paulista, as diversas miscigenações motivadas
pelo ciclos econômicos e as inevitáveis interferências
dessas mudanças no que se come.
Os sabores vão se espalhando em meio às idiossincrasias
da história. Paçoca de carne seca? Outra comida não
resistiria ao ambiente pouco salutar dos tropeiros. Lanche da tarde?
É claro, as sinhás precisavam abrir um espaço
para exibir seus predicados culinários. Pudim de café?
Nada mais óbvio na São Paulo da República Velha.
Cada decreto presidencial, cada paixão de português por
uma índia, cada japonês que chega a uma fazenda do interior,
ganha tempero e cheiro no livro de Belluzzo. Ela folheia a história
paulista buscando não só o que estavam fazendo ali na
roça, quem eram seus patrões e o que pretendiam, mas
principalmente o que todos preparavam na cozinha enquanto construíam
essa parte do país.
O resultado é um livro paradoxalmente cindido e coerente. Até
a página 71, textos e ilustrações a anos-luz
do ranço acadêmico. A partir daí, as receitas,
outro ponto forte. Dificilmente o leitor encontrará em outra
literatura o fantástico segredo da massa da brevidade, um doce
que eu nunca soubera como é feito (bater as claras primeiro,
só depois juntar as gemas). E quem diz como é que a
broinha de amendoim fica oca por dentro? Para isso, é preciso
socar muito bem a massa. As receitas são assim, com muitos
parênteses e sem economia de papel. Acham-se nas receitas originais
(até em fac-símiles) ingredientes que são apresentados
com seus similares modernos (banha de porco versus gordura vegetal,
por exemplo).
E por que gastar energia escrevendo, ou lendo sobre a história
paulista se o que importa são as receitas do final? Este é
o motivo para este livro híbrido ter surgido, e não
há outro motivo para abrimos este espaço para sua resenha.
A comida é "um valor elementar enraizado em nossos mais
profundos sistemas de crenças", diz um autor citado no
livro, Carlos Zolla. Rosa Belluzzo tem a certeza, e o declara logo
na abertura, que a tradicional cozinha paulista está em declínio,
portanto "reviver a variedade de sabores e aromas da tradicional
cozinha de São Paulo significa valorizar a compreensão
da história do cotidiano das famílias paulistas".
Para ela, praticar as receitas de seu livro é algo como lembrar
quem somos. Um exercício de auto-afirmação em
torno da mesa.
Trecho do livro:
"Quando
os portugueses começaram a se deslocar para o planalto paulista,
poucas eram as mulheres que os acompanhavam a essa plagas; e os
colonizadores que vieram com suas famílias logo partiam para
o sertão, deixando suas esposas por alguns anos.
No final do século XVIII, a situação mudou
com o esgotamento do ouro das Minas Gerais, de Cuiabá e Mato
Grosso e, conseqüentemente, ocorreu o retorno dos bandeirantes
à província paulista. Consolidou-se o povoamento nas
zonas rurais com a abertura de novas frentes de trabalho e a implantação
do ciclo açucareiro.
Nessa fase da produção de açúcar, quase
não havia excedentes; as safras eram exportadas para Portugal
e Rio de Janeiro, então capital do Império. Restava
apenas a raspa do tacho, o melado e a rapadura. As sinhás
criaram receitas com milho, fubá, amendoim e frutas. Nossas
confeiteiras, no entanto, não tinham meios de disputar a
primazia com a secular doçaria pernambucana.
O açúcar e os doces eram dádivas singulares
das terras de Pernambuco, exclusividade das sinhás, que identificavam
suas requintadas receitas com nomes de família.
Com a riqueza do café, várias engenhocas foram instaladas
nas fazendas, facilitando a produção dos doces.
As discretas senhoras paulistas não divulgavam com tanta
ênfase seus predicados e suas criações culinárias.
Dedicadas com afinco e precisão aos pesos e medidas, eram
elas as detentoras dos segredos da doçaria - do ponto da
calda de açúcar, da quantidade de ovos ou de farinha
de trigo, das técnicas de cozimento. Os doces e as sobremesas
eram considerados o quinhão nobre da refeição;
os demais pratos, como vimos, eram preparados pelos serviçais.
Sendo as mulheres iletradas, as receitas eram transmitidas oralmente
de geração para geração, razão
pela qual muitas delas se perderam.
No Brasil, os cadernos de receitas começaram a surgir no
final do século XIX. Segundo o historiador Bruno Laurioux,
eles constituem o melhor testemunho das transformações
das práticas culinárias de uma sociedade ou região:
"Cada manuscrito representa um caso particular, a combinação
específica de heranças textuais, de limitações
locais e materiais e finalmente de desejos e gostos".
Título:
São
Paulo - Memória e Sabor
Autor: Rosa Belluzzo
Editora Unesp
117 páginas
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