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Os modernos são tão fetichistas quanto os adoradores
de totens
Fábio Sanchez
A palavra subversivo pode ter alguns bons
sentidos. Vamos incluir entre eles o sinônimo "perturbador"
para definir o Bruno Latour que escreveu o pequeno e espesso Reflexão
sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches (Editora Edusc, 106 páginas,
tradução de Sandra Moreira). O pesquisador e filósofo
Latour costuma provocar arrepios em cientistas, principalmente nos que
preferem manter as ciências "duras" (exatas, física,
química etc) em isolamento profilático, bem distantes das
ciência "humanas". Áreas como antropologia, etnologia
e sociologia oferecem algum risco de contaminação ao colocar
no mesmo ambiente os pesquisadores que estão enfurnados em laboratórios
e seres humanos da rua, da vida cotidiana, que trabalham em qualquer outra
coisa, capazes de ter crenças e paixões e, portanto, capazes
de errar muito. Uma comparação perigosa, porque pode facilmente
corroer um ambiente, o da pesquisa científica, firmado em convicções
inabaláveis (o big bang, a evolução dos macacos,
as partículas subatômicas etc).
Mas Latour aparece para dizer que tudo o
que se explica e se comprova cientificamente é construído
num modelo em que há também um dedo de imperfeição,
ou pelo menos as impressões digitais do autor, o próprio
homem, que todos sabem imperfeito. Assim, amplas e famosas teses de doutorado
aparecem, no ambiente construído por Latour, como um simples argumento
que se socorre em vários outros (as inúmeras citações
científicas) para se legitimar, nem sempre com precisão
ou com harmonia de propósitos com os outros trabalhos que cita.
Como bem sabem os críticos da revisão por pares (o sistema
que põe cientistas citados numa pesquisa, ou seus amigos, para
avaliá-la), uma tese acadêmica ganha alguns pontos quando
apresenta uma polpuda lista de outros trabalhos a comprovar-lhe as idéias.
Caberia, lembra Latour, ler todos os estudos citados para saber se eles
de fato cacifam essa tese inicial, mas como isso é praticamente
impossível, o número de citações continua
uma variável valorizada. É por isso que ele deve rir de
um cacoete da imprensa e da publicidade, a citação recorrente
a algo que foi "cientificamente comprovado". Essa comprovação,
para Latour, nada mais é do que uma verdade assumida por um grupo
de pessoas, jamais definitiva.
E não será desta vez, com essa
reflexão sobre fetichismo, que Latour deixará em paz os
cientistas, embora o tema do fetiche, no lugar-comum de nossas leituras,
remeta mais a tribos indígenas adorando totens, a sessões
de candomblé ou, no máximo de proximidade, a missas em igrejas
repletas de imagens de santos. Para Latour, o fetichismo está em
todo lugar onde há uma pessoa, inclusive no laboratório.
Usando o que chama de "etnopsiquiatria", ele busca uma maneira
de avaliar o fetichismo guardando o princípio da simetria entre
os seres humanos. Avalia que se um índio adorador de totens tem
uma crença em algo que ele próprio fez com suas mãos
(o totem), essa crença não é totalmente ingênua,
pois ele mesmo cortou e esculpiu a madeira que considera santa. O índio
simplesmente faz uso desse artifício para sublimar um sentimento
que talvez seja temor pelo desconhecido. Dessa forma, haveria algum cinismo
entre os "civilizados" ao simplificar as coisas dizendo que
o índio adora a madeira, ou um pedaço de pedra, ou qualquer
outro objeto. Fiel à simetria, Latour passa então a buscar
os totens erguidos pelos "civilizados", em plenas cidades. Não
precisa procurar muito para encontrar.
O que causa o fetiche é, em certa
medida, a existência de medos (ele chama de "pavores")
presentes em todos nós que precisam ser expiados, concentrados
num determinado objeto para que se possa ter mais controle sobre eles.
Uma forma dissimulada de ordenar o caos. Os objetos santos são,
portanto, uma das formas de explicação do mundo, de respostas
a dúvidas que ainda nos incomodam. Se é assim, o mundo teoricamente
desprovido de fetiches (a nossa moderna civilização) é
povoado por tantos pavores quanto o mundo com fetiches. Para explicar-se,
Latour recorre até a Karl Marx, que no século XIX já
dizia que o fetichismo adere aos produtos do trabalho tão logo
eles se apresentem como mercadorias. Ou seja, em tudo que utilizamos depositamos
alguma crença.
Se o fetichismo está generalizado
desta forma, como estabelecer, para que o mundo não seja uma balbúrdia,
a diferença entre o que é um fato e apenas um fetiche? Latour
não vê respostas simples a esta pergunta, mas permite-se
zelar pelo fim do cinismo. Quando Louis Pateur, num exemplo citado no
livro, realiza experiências com uma levedura de ácido lático,
e essa levedura apresenta reações próprias, estaria
criado um novo ser? Não seria o ácido lático, arranjado
para a experiência pelas mãos do próprio Pasteur,
um experimento que adquiriu vida própria? O próprio Pasteur
acreditou que sim. Então não haveria muita diferença
entre o famoso cientista e um suposto índio adorador dos totens
(que ele mesmo fez ao serrar e esculpir a madeira). Mas espere um pouco.
Pasteur baseou-se em fundamentos científicos milenares para construir
seu fermento, enquanto o índio tem apenas fé. Para Latour
as duas coisas não são tão diferentes assim. Ambos
utilizaram o conhecimento de que dispunham. Tanto um quanto outro acreditou
no que fez e poderia facilmente descrever as técnicas utilizadas
e o que significou o objeto final a que se chegou. Porém nenhum
dos dois teria uma crença totalmente ingênua, pois sabiam
muito bem como tudo foi feito. E ambos projetaram no material que produziram
os seus próprios pavores para a ausência de explicações
sobre algumas coisas da vida. A diferença talvez seja que Pasteur
chamou de fato o que produziu, enquanto o suposto índio não
se incomoda com a rotulação de "fetichista".
O conteúdo subversivo desse raciocínio
é tão grande que não podia deixar de contaminar também
as relações políticas. O próprio sistema de
representação não seria também um fetiche?
Latour pergunta se os políticos são fiéis a seus
mandatos e constróem uma voz para o eleitorado que este não
teria sem eles; ou se eles inventam (como fizeram de outra forma Pasteur
com o ácido e o índio com o totem), por meio da manipulação,
da propaganda e do conchavo, aquilo que seus representados devem dizer?
Aqui Latour cita Pierre Bourdieu: "a violência simbólica
do ministro só pode ser exercida com essa espécie de cumplicidade
que lhe concedem (...) aqueles sobre os quais se exerce essa violência".
Daí a necessidade da construção de sistemas (no caso,
o da representação política) para se justificar a
ação arbitrária sobre a vida das pessoas. O raciocínio
é simples. O fetiche, ou a manipulação de imagens
encantadas, interessa na medida em que permite a dominação
dos outros. Diz o autor: O encantamento permite ser astucioso para
com o pavor, segundo a fórmula bastante geral: "Se você
pode me tomar por um outro qualquer, você tomará talvez este
outro por mim".
Sim, seríamos todos fetichistas em
meio a um jogo pelo poder. Cabe apenas saber se vamos nos locupletar e
deixar tudo ordenado como está. Ou se teremos o bom senso de pensar
em quem se beneficia com as imagens que povoam o mundo. O que Latour sugere
é exatamente isso, uma descoberta que pode transformar num piscar
de olhos um dogma inquestionável em um mito. Ou que pelo menos,
se o apego à ordem for muito grande, que acredite-se nesse dogma
de forma menos ingênua.
A leitura não é muito amena
e alguma iniciação anterior em obras mais simples do autor
ajudaria. Mas não é nada que um pouco de concentração
não resolva. O fe(i)tiches do título é uma
tentativa de representar em português a corruptela cometida por
Latour no original em francês, em que ele pretendeu unir duas palavras:
fait (feito, fato) e fétiche (fetiche). Uma brincadeira
para zombar com a possibilidade de que supostos fatos sejam na verdade
fetiches.
Trecho do livro:
..."Quando Elizabeth Claverie segue
em peregrinação a Medjugorje para ver a aparição
da Virgem Maria, ao meio-dia em ponto, ela (...) não começa
a se dizer, pavoneando-se de sua superioridade científica: "Como
bem sei que a Virgem não existe e nem aparece, vou tentar somente
compreender como os humildes trabalhadores franceses podem acreditar na
sua existência e por quais razões". Ela segue o dedo
que indica a Virgem, atitude extremamente sensata e, sobretudo, extremamente
sábia. Sim, claro, a Virgem aparece, todo mundo a vê, toda
a multidão, no crepitar das Polaroids, obtém a prova dessa
aparição. Elizabeth também a vê: como não
vê-la? Mas caso agora se escute as vozes múltiplas que se
elevam na multidão em prece, assim como o murmúrio emocionado
no trem que reconduz os peregrinos para Paris, percebe-se, com surpresa,
que em nenhum momento os fotógrafos esperavam ver a Virgem se fixar,
como uma estátua de Saint Sulpice, no papel fotográfico.
A Virgem não exige, de modo algum, ocupar a posição
de coisa a ser vista - ou de ilusão a ser denunciada; o fermento
de Pasteur não exige, em momento algum, para que possa realmente
existir, o papel de objeto construído - ou de objeto descoberto
(...). O envoltório ontológico criado pela Virgem salvadora,
seu "caderno de encargos", pode-se ousar dizer, obedece a exigências
que não recortam, em nenhum momento, os dois pólos da pobre
existência e da pobre representação. Ela faz algo
completamente diferente, ela ocupa o mundo - sim, eu disse o mundo - de
uma forma que surpreende tanto os clérigos como os anticlericais."...
Título:
Reflexão sobre o culto moderno
dos deuses fe(i)tiches
Autor: Bruno Latour (tradução de Sandra Moreira)
Editora:
Edusc
106 páginas
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