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Por Fábio Sanchez
Os militares estão gozando a doce
sensação de poder avaliar o Brasil estando do lado de fora
dos principais postos de comando. Ainda mais doce pelo mérito de
terem se recusado a entrar novamente no jogo político quando foram
instados a isso, durante a chamada Nova República, período
de quatro presidentes (José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco
e Fernando Henrique Cardoso) que sucedeu o regime militar. Doce também
porque agora podem se dar alguns luxos. Por exemplo: revelar intrigas
internas, como o "gelo" a que foi submetido em 1984 o então
ministro da Aeronáutica Délio Jardim de Matos. Ele criticou
publicamente, na inauguração de um aeroporto na Bahia, o
então governador baiano Antonio Carlos Magalhães porque
este preferiu Tancredo Neves a Paulo Maluf na sucessão de João
Figueiredo (a defesa de Maluf, apoiado por Figueiredo, foi considerada
um inadequado retorno à vida civil, condenada pelos pares de Délio).
Outro luxo é criticar francamente as próprias forças
armadas, dizendo por exemplo que o Exército gosta de mandar mais
do que as demais forças, ou ainda criticar o próprio governo,
afirmando que o Ministério da Defesa teria sido criado sob pressão
norte-americana. A incursão dos membros das Forças Armadas
no debate livre e democrático dos temas nacionais, inclusive sobre
as próprias forças armadas, que inclui estas e muitas outras
informações inéditas, está no livro Militares
e política na Nova República, de Celso Castro e Maria
Celina D'Araujo (editora FGV).
Os depoimentos inéditos e francos
de 14 militares, ex-ministros e chefes das forças, dão um
painel de como foi o pouso do Brasil na democracia após vinte anos
de regime militar e de como os militares se comportaram nesse período
pós-84, seus motivos para manter distância do xadrez político
e suas motivações para batalhas pontuais, como as que se
viram durante a Constituição de 1988. Verifica-se pelo livro
que a transição para a democracia não foi tão
suave como possa parecer e que os militares guardam graves mágoas
sobre o tratamento que receberam de setores da sociedade civil durante
e após a ditadura.
Nos que talvez sejam os três momentos
mais tensos da República depois do regime militar (a morte de Tancredo
Neves, em 1985, a Constituinte de 1988 e o impeachment de Fernando Collor,
em 1992) a sociedade civil parou para olhar a reação dos
militares, que conseguiram manter neutralidade quase olímpica,
exceção talvez à Constituinte, onde eles brigaram
abertamente por suas demandas, mas somente as militares. No caso do impeachment
de Collor, por exemplo, o almirante Mário César Flores,
ministro da marinha em 1992, conta que no final de setembro daquele ano,
na véspera da votação, pela Câmara dos Deputados,
da autorização para o Senado processar o presidente da República,
ele recebeu uma visita do presidente do Congresso, Ulysses Guimarães.
O deputado disse não ter certeza de que a autorização
para processar Collor passaria, e perguntou: o que aconteceria se não
pasasse? Flores, que tinha um pacto firmado com os demais ministros militares
para manter neutralidade total no caso, disse que se isso ocorresse o
presidente continuaria presidente. Ulysses replicou: "E o povo, como
fica?". E Flores: "Eu respondi que quem representava o povo
eram os deputados". Flores e os ministros acharam a consulta de Ulysses
"ambígua".
O livro também aponta alguns motivos
para a neutralidade militar. Um deles seria a grande mágoa que
os militares ainda sentem por terem ficado com uma imagem ruim após
o período em que governaram o país. "A revolução
de 1964 perdeu a batalha da mídia. Totalmente. Até hoje
é execrada", lamenta o ex-ministro da Aeronáutica Sócrates
da Costa Monteiro, numa das reveladoras entrevistas do livro.
Os relatos de detalhes apetitosos da história
recente do país são costurados com uma análise fina
e afiada de Celso Castro e Maria Celina D'Araujo. Ocorreu a eles, por
exemplo, a idéia de fazer uma análise das emblemáticas
e sempre discretas mudanças que os militares promoveram, durante
a Nova República, nas datas de suas comemorações.
Deixaram, por exemplo, de comemorar a antes importantíssima vitória
sobre a "intentona" comunista de 1935. Suspenderam em 1995,
primeiro ano de governo do ex-esquerdista Fernando Henrique Cardoso, a
ordem do dia conjunta dos ministros militares que ocorria todo dia 31
de março, em comemoração à tomada o poder
em 1964. Em compensação, em 1994 foi criado o Dia do Exército
na data da primeira batalha de Guararapes (19 de abril de 1648), numa
"tentativa de se atualizarem, em um novo contexto histórico,
antigas conexões entre Exército e Nação",
escrevem os autores.
Num belo exemplo de resgate da história
oral, que continua uma série de outros trabalhos já realizados
pela dupla de autores junto a militares, este livro é indispensável
a quem se interesse pelos temas política e governabilidade.
Título:
Militares e política na Nova República
Autores: Celso Castro e Maria Celina D'Araujo
Editora: Editora FGV
357 páginas
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